terça-feira, 24 de maio de 2016

Solidariedade é doar o que não nos fará falta!

Durante uma aula na faculdade, meu colega foi avisado pela secretária (ainda não havia celular) de que deveria comparecer urgente ao hospital para um transplante de córnea. Ele enxergava apenas de um olho e receberia o novo órgão dali a algumas horas. Sem pestanejar, o rapaz guardou os livros na mochila e saiu correndo para uma cirurgia que aguardava há anos na fila de espera. O transplante foi um sucesso e em poucas semanas meu colega já estava livre dos óculos "fundo de garrafa", aliviado pela solidariedade da família do doador, um homem que morrera num acidente e que não precisaria mais dos seus olhos. Com essa doação, outras pessoas também foram beneficiadas por transplantes de fígado, rins, coração.
Um ano depois, em 1997, o Governo lançou uma lei que obrigava a doação de órgãos por todos os brasileiros, com inscrição na Carteira de Identidade "Sou doador de órgãos". A medida gerou polêmica e fez sentido contrário, levando os cidadãos a colocar um Não na frente da frase. A ideia era boa, mas nenhum brasileiro aceitou a obrigatoriedade de um gesto que é pessoal, assim como qualquer tipo de solidariedade. Uma doação que é imposta perde o sentido de ajuda ao próximo. Ser um doador de órgãos é uma questão de princípios e não pode ser determinada pelo Estado. Após debates acirrados, o Governo voltou atrás e hoje o doador de órgãos pode ou não colocar seu desejo por escrito no documento que o identifica. De qualquer forma, os médicos comunicam à família essa possibilidade, em caso de morte do paciente.
Num país enorme como o Brasil, há poucas doações de órgãos e tecidos por motivos diversos (religiosos, políticos, medo, falta de esclarecimento). Há quem acredite que a inscrição "Sou doador de órgãos" na carteira de identidade possibilite que os médicos antecipem sua morte para a retirada dos órgãos para beneficiar outro paciente. Pode realmente acontecer, mas não há muitas provas desta insanidade. A verdade é que através do transplante uma pessoa altamente debilitada pode voltar a ter uma vida normal com a substituição do órgão falho. É praticamente uma ressuscitação.
Os brasileiros são conhecidos pela solidariedade em ofertar ajuda aos necessitados em todo tipo de situação, doando materiais e alimentos à quem dorme na rua, ajudando drogados e mendigos, se fantasiando-se de palhaços para crianças em hospitais. Mas, estes gestos se contradizem no momento de ajudar realmente quem precisa de uma nova vida. Doar pode significar dividir, mas pode também ser sinônimo de oferecer ao outro o que não já não nos faz falta. Um corpo que já viveu não precisará mais dos órgãos que seguraram uma alma que viveu, sofreu dissabores, distribuiu sorrisos. Um rosto que já enxergou não necessitará mais dos olhos para ver a beleza da vida. Um coração que já não bate no peito do morto pode renovar e propiciar novos sentimentos. A doação de órgãos, assim como qualquer ato de ajuda ao próximo, deve vir de dentro de cada um. Como dizia Tomás de Aquino: "Um ato só é humano se for livre". A decisão é pessoal, não pode ser imposta. Ninguém pode ajudar o outro por nós.
Não sabemos para onde iremos após a nossa morte. Mas, ao doarmos partes do nosso corpo à quem ainda ficará na Terra, temos a chance de sermos enormes em sentimentos, em amor, em respeito ao próximo. Este, com certeza é o maior ato de solidariedade que um ser humano pode realizar. E doar é se colocar no lugar do outro. Ser solidário é partilhar os sentimentos, é ser nobre, é permitir que outra vida sobreviva através de órgãos que não farão falta em outras vidas, se elas existirem. Eu sou uma doadora e não precisei escrever na minha carteira de identidade. Quando eu for embora deste mundo, não carregarei nada daqui. Mas, quem sobreviver com um pedaço meu, terá a certeza de que fui uma pessoa de bom coração. Então, minha alma ficará feliz, onde quer que ela se instale!

* O transplante de órgãos e tecidos no Brasil é regulamentado pela Lei 9.434 de 4 de fevereiro de 1997 e pela Lei 10.211 de 23 de março de 2001 e segundo o Ministério da Saúde só podem ser doadores, pessoas com morte encefálica, num processo irreversível, incompatível com a vida.

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