sexta-feira, 28 de março de 2014

Minha avó, eu e o amor!


Nos livros infantis e de ficção, as personagens costumam ser estereotipadas, como as avós, citadas como senhoras simpáticas, que contam lindas histórias para os netinhos. Geralmente de coque na cabeça, avental e sentadas à cadeira de balanço,  elas simbolizam o amor, a ternura, a calma. Mas, a realidade pode ser bem diferente. Minha avó, por exemplo, não era nada amigável. De poucas palavras, não havia um sorriso no rosto daquela mulher. Quando abria a boca, era para nos xingar. Me lembro daquela mulher magra, alta, de pernas meio tortas, ora sentada no sofá da sala, ora cozinhando, ou alimentando as galinhas. No meu entender de criança, minha avó era estranha, mal-humorada, que não merecia meu avô, tão bonzinho, educado e divertido.
Em meio às brincadeiras, meu passatempo preferido era observar aquela mulher sem vaidades. Constantemente de tranças nos cabelos e vestidos floridos, eu buscava algum resquício de sensualidade que justificasse a fama de sua beleza do passado. Não me parecia que algum homem tivesse agradado daquela mulher sem graça e de comportamento tão difícil. Nem com os cabelos soltos, que só lavava nas sextas-feiras, ela me parecia interessante. Nunca pintou as unhas e o rosto, e vestido bonito, só quando ia à missa. Mas, o que mais me incomodava naquela mulher era o silêncio. Não aquele silêncio de pensamento, de observação, de meditação, mas o silêncio do rancor, da amargura, da vontade de reclamar, que aprendeu a engolir, talvez com as mulheres de sua família.

Eu também era silenciosa, mas meus sonhos me transportavam para um futuro que minha avó jamais alcançaria. Não só pela idade avançada, mas pelos meus ideais de felicidade. Eu até poderia me casar, ter filhos, fazer bolos, mas jamais por obrigação. E era essa a distância entre mim e minha avó: o passado dela e o meu presente. Nossas diferenças de idade me faziam entender que eu estava no lucro, por mais que eu sofresse enquanto estivesse ali. Eu poderia ter um destino de amor, e não de tristeza e isso era uma afronta interna, que eu sentia prazer em provocar. Eu poderia viver um conto de fadas, morar num castelo e vestir roupas lindas como uma princesa. Mas, aos olhos dela, eu não significava nada. Já eu, a via como uma bruxa dos livrinhos infantis. 

Malévola. Só ela era capaz de obrigar as netas a comerem as mangas que arrancaram dos pés das árvores baixas. Somente uma bruxa para não entender que aquilo fazia parte da infância. As milhares de frutas, que apodreciam por falta de consumidores, serviram para derramar em nós, crianças, todo seu ódio do mundo. Apenas avós como a minha tinham a coragem de maltratar as visitas pequenas que descansavam das aulas em sua casa. Como resposta àquela grossura, nossas visitas à ela, foram se tornando escassas, até findarem de vez.
Quando meu avô morreu, minha avó ficou ainda mais silenciosa. E, se a separação definitiva do homem com quem conviveu por muitos anos a fez dura consigo, por outro lado, deixou transparecer naquela mulher, uma sensibilidade até então desconhecida. Reparei nisso em duas situações: a primeira, quando ela dividiu comigo uma maçã. A segunda, quando me alertou sobre um garoto que me levaria para sair num noite de sábado. Talvez ela conhecesse os canalhas, mas não a obedeci, resolvi arriscar. E me dei mal. O rapaz tentou me agarrar e custei a me desvencilhar dele. Cheguei chorando e ela me pôs para dormir em seu quarto, depois de me dizer palavras de conforto. Foi bom desconstruir a imagem que bruxa que eu havia criado em cima da minha avó. Agora eu a via como um ser humano capaz de amar, de ensinar e de entender o coração de uma moça tão inexperiente.
Depois desse carinho, voltei à casa da minha avó algumas vezes, mas já percebia que as férias estavam terminando para sempre. Sem o companheiro, aquela mulher, que fora tão durona, entregava os pontos e já não aguentava a solidão. Viver, para ela, parecia um tormento e morte eminente era uma certeza. Imagino que ela tenha feito um balanço da vida, percebendo que o amor deve ser compartilhado, dito, escancarado. Mas, ela nascera numa época em que as mulheres não demonstravam desejos, não falavam de sexo ou de amor, nem viviam todos os sentimentos por medo de represálias. Este despertar a fizera uma mulher mais sensível, apaixonada, embora a tristeza fizesse parte de sua personalidade. Mas, era tarde demais. Aos 75 anos, minha avó se despediu da vida, sem deixar rastros, e quase sem deixar saudades!

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